Exposição Tempos que Habitam em Mim

Sobre a exposição

Carlos Habe 1, 2022

O título escolhido pelo artista Azeite de Leos para essa ex- posição (que tem a intenção de ser uma reavaliação dos últimos 10 anos de sua produção artística) não poderia resumir de melhor forma a questão que permeia toda a sua obra: a impermanência, a tentativa vã do homem de transcender seu tempo e de “deixar uma marca”. Segundo a galerista e historiadora da arte Loly Demercian 2 “Azeite de Leos nesses últimos dez anos, fez uma retomada, uma reestruturação em seu fazer, e olhando para trás, nos trabalhos realizados, foram marcados por um tempo que ali existiu, e, ao questionar a integridade da matéria, trás a tona a nossa própria fragilidade e efemeridade”.
O tempo não retrocede, o tempo não avança, apenas é. O tempo existe. Sempre! A infinitude do tempo é o contraponto irônico de todo o desejo do homem de construir algo que perpetue, que não tenha fim. Essa antiga (e eterna) problemática do homem de agir/construir/criar apesar do tempo, parece se manifestar fortemente na pesquisa artística de Leos. Podemos encontrar em toda a sua produção o diálogo estabelecido entre a ação do homem e a ação do tempo. No começo de sua trajetória, a base de sua produção artística estava fundamentada nas intersecções entre desenho e escrita, enquanto manifestações possíveis de ambos no campo do fluxo de pensamento e da criação de narrativas, como explicitado pela artista e pesquisadora Beatriz Rauscher 3 em seu texto “Onde o desenhar coagula” 4 so- bre a obra do artista: “O eixo dos investimentos poéticos de Azeite de Leos está na intersecção entre desenho e escritura. O desenhar é ação fundadora e construtora das micronarrativas criadas por ele, trata-se de um desenhar se fazendo, um desenho fluído e em fluxo”. E se este desenho se manifesta na forma de um fluxo (ou seja, o modo contínuo, o curso constante), cada trabalho poderia então ser percebido como uma forma de registro (registro do pensamento, registro do movimento do corpo, registro de um momento). Portanto, era natural que o artista começasse a se interessar, dentro de sua pesquisa plástica, pelas possibilidades do suporte, por dar um caráter envelhecido ao suporte do de- senho – se o desenhar era o registro da ação do homem, do pensamento, do gesto e, principalmente, de um instante, o suporte, portanto, precisaria “denunciar” a passagem do tempo.
Inicialmente, Azeite de Leos oxidava, sujava e “maltratava” o papel no qual posteriormente iria desenhar, mas aos poucos percebeu que esse procedimento não era muito “autêntico e sincero” e, gradativamente migrou do papel para telas nas quais registra a passagem do tempo ao serem impressas por muros deteriorados. Essa mudança de suporte possibilitou novos procedimentos para a realização dos desenhos, os escritos eram realizados com tinta, linhas “em negativo” surgiam ao utilizar ponta seca, gravetos ou qualquer outro instrumento para desbastar manchas feitas de betume e marcar as texturas que surgiam a partir dos resíduos dos muros depositados na tela.
“Essas marcas que o artista enfatiza e revela, são desenhos que se produzem como uma gravação. O gravar tem origem nas primeiras manifestações do homem, que com instrumentos de corte fazia incisões sobre as superfícies para registrar algo assim, o gesto da gravação traz, além do sentido expresso na imagem ou texto executado, o sentido de permanência, de durabilidade daquele gesto. Então, incisão e corrosão, como as marcas contundentes nessas superfícies, trazem para o trabalho a qualidade da cicatriz” 5 .
Esse novo resultado estabelecia o confronto entre o registro da ação do homem (o gesto, o desenho, a escrita) e o registro da ação do tempo (impressão dos muros). Remetendo a uma visualidade de um mundo em transformação, de paisagens urbanas à deriva.
Em sua última série de trabalhos, Azeite de Leos retira as texturas e os substratos/resíduos do mundo e os recompõem em camadas, mas deixa essas camadas bem definidas, não as sobrepõem de modo que resultem em uma fusão. As imagens dos muros são registradas em monotipias (agora, em pedaços de tecidos, não mais em uma tela montada em um chassi) e depois utilizadas, através de colagens e de justa- posições, para compor “quadros” que, por sua vez, configuram representações de diferentes tempos, um diálogo de diferentes “marcas” (do tempo, da matéria, dos gestos e escritas dos de- senhos).
Nesses trabalhos, ainda percebemos os planos distintos, as camadas que, em suas últimas produções, chegam a se “de- pendurar” do chassi – neste caso a utilização do chassi ganha importância por ser um comentário acerca do status da arte – suportando de forma precária as camadas de tecidos. Essas “lascas de tempo”…
Registros, depositários, testemunhas do tempo. O debate sobre o suporte e a constituição de uma poética do registro é o que torna Azeite de Leos um dos artistas mais interessantes de sua geração. Seu trabalho não reflete a experiência contemporânea de velocidade, de “flash”, de superficialidade de dados… mas se constitui como um ato de resistência, de resgate da materi- alidade, resgate de experiências mais íntegras com as coisas do mundo. A experiência do agora.
 


1 HABE, Carlos. arteterapeuta, arte-educador ; é mestre em teoria, Crítica e História da Arte pela FASM- SP, especialista em
avaliação de aprendizagem pela PUC-Cogeae, psicopedagogo pela UniFieo e arte educador pela FAAP-SP; é professor do curso de pedagogia da Unifae.

2 DEMERCIAN, Loly. Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo , é membro do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Criação nas Mídias (CCM) da PUC/SP. É curadora independente. Realizou mais de 30 exposições em artes visuais e projetos culturais. Autora dos livros: Arte/Educação no Ensino Médio: Um estudo sobre a utilização das novas mídias / Diálogos Possíveis: o tempo e a duração na videoinstalação.

3 RAUSCHER, Beatriz é artista; doutora em Póeticas Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; foi bolsista CAPES na Université Sorbonne Nouvelle – Paris III; é professora no Programa de Pós- Graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU-MG) e líder do Grupo de Pesquisa “Poéticas da Imagem” UFU/ CNPq.

4 Em seu texto Onde o desenho coagula feito para a exposição Entre Processos do artista Azeite de Leos, Beatriz Rauscher recorreu as ideias em torno do conceito de “arqueologia da impressão” apresenta- do pelo filósofo Georges Didi-Huberman em sua obra La ressemblance por contact.

5 RAUSCHER, Beatriz. Onde o desenho coagula.